terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Desejo


Só hoje, talvez não.
Mas hoje eu não quero mais o sangue nas mãos.
Não quero mais a vida pendurada na ponta do meu bisturí.
Não quero mais a doce delícia de brincar de Deus.
Não quero a responsabilidade, a vida, a felicidade.
Não quero saber nada.
Quero ver o amor nascer e nem pensar na dor.
Quero sentir a dor rasgar e não ter nada com isso.
Quero ser isenta.
Quero a absolvição prévia dos ingênuos e ignorantes.
Dos bem aventurados pobres de espírito.
Das criancinhas.
Quero cantar uma canção sem saber a letra.
Quero assobiar o poema e rir até me acabar, de rimar bunda com funda.
Quero a cacofonia me fazendo cócegas na barriga.
E o arrepio e medo só do mergulho.
Quero andar no escuro tateando os monstros e rir de seu desaparecimento quando encarar a escuridão.
Não quero a luz.
Quero o canto da sereia.
Me afogar e gostar.
E sumir na imensidão do mais fundo do mar.
Quero ser a onda lambendo a areia e me entranhando nela.
Quero ser o anjinho levando o mar numa conchinha para o buraquinho.
E acreditar que isso é só uma brincadeira e não um enigma para atomentar a alma do homem que pensa e pergunta.
Só hoje eu quero ser Amélia e fazer um pudim de claras, perfeito e doce.
E comê-lo inteirinho com molho de vinho ou de baunilha,  prendendo entre os dentes as lasquinhas de limão.
Quero brincar de palavras grudadas e repetir até a exaustão o mesmo som , até ele perder o sentido qualquer que tenha tido.
Quero sair andando sem me importar para onde e voltar só depois de muitas voltas.
Outra.
Outra eu.
Outra dor.
Outra vida.
Ainda que a mesma.
Só hoje não ser eu.
Olhar-me no espelho e encontrar o gato da Alice.
Só o sorriso.
E o rabo.


Imagem:Picasa Lino>miscelanea. Caracol presumido

11 comentários:

Karênina Michelle disse...

Encontrei, mergulhada em meu desejo, a vontade profunda de me adentrar neste mundo, ora profano, ora sensível...

Por suas palavras, por este seu canto... agradecemos.

bjos.

Bípede Falante disse...

Marie, se fosse possível um post em branco, sem palavras, eu assim o enviaria para ti, para que nada, nem ninguém maculasse esse só hoje pelo qual você implora, mas como as palavras precisam de forma e cor, escrevo um pouquinho porque você é a minha estimada Marie. Beijo. Bípede

Aline Cabral Vaz disse...

Lindo, lindo. Bj!

Terráqueo disse...

Marie,

Essa poesia me tocou muito. Ando não querendo ser eu mesmo há muito tempo, ainda que por um único dia. Acho dificílimo escrever poesia e manter o leitor atento. Você consegue com maestria. É inteligentíssima. Que bom ter uma amiga assim.

Bj,

Terráqueo

Unknown disse...

Amélias, Alices.
Como é difícil ser
sem rótulos!

Vivi disse...

Belíssimo, Marie! Desejos de caracol presumido ou recolhido. Beijos, Vivi

Karênina Michelle disse...

De tanto ler suas palavras... fui otimista, presunçosa e corajosa.
Não sei se fui feliz em minhas colocações, mas postado já está, paciência! rs

Espero sua visita.

Carla Maria Forlin disse...

ahssefodê Dona Marie!
Pudim de claras!
Olha, vc escreve pornografia de ótima qualidade, mas as lasquinhas de limão do pudim de claras foi de foder mesmo.

Tão bom quando chupar aquele cravinho do doce de abóbora que só vovó fazia.

Bípede Falante disse...

Marie, manda o seu email para minimoajuste@gmail.com
para eu poder de mandar a permissão do blog. Não vamos distribuir senhas porque chegamos a conclusão que o blog ficaria muito vulnerável.
Beijoss

Bípede Falante disse...

Marie, cadê o seu email???

lisa disse...

o melhor de tudo é brincar de não ser "eu". :)