sábado, 3 de janeiro de 2009

Bopy I

Bopy era o autêntico Vira-lata.
Desde que Ela lembrava existir, lá estava ele.
Branco com manchas café-com-leite. Porte médio. Esguio. Parecendo até fracote. Um olhar doce e sagaz.
Por tudo andava atrás do Dono. O gigante de bondade que ele adorava.
Mas era muito independente.
À dona da casa, obedecia apenas quando queria ou achava que devia. Tinha hombridade. Fidelidade de gênero.
Nas tardes modorrentas deixava-se ficar em qualquer canto. Nos dias de frio buscava os lugares embaixo das janelas, com uma nesga de sol.
Deixava-se tocar a vassoradas e saía na balada, fingindo perseguir os urubus, ou algum gato ousado.
Manhã cedinho, sol ou chuva, saíam os dois.
Entravam no galinheiro e a algazarra era geral. As galinhas corriam a esconder-se entre as hastes do pequeno canavial, onde escondiam os ninhos. Ele achava. Latia alto e estacava avisando o novo. Adorava ovo quente.
Supervisinova o cortar da lenha e seu organizar na casinha que nem era de cachorro, muito grande, nem de menina, suja, cheia de lenha.
Depois debandavam para a rua. O grande velho de chapéu e bicicleta. A imensa Monark, branca e amarela em que Ela, depois, ainda muito pequena, rodava também a cidade, pedalando retorcida por dentro do arco.
Todos conheciam aquela dupla. Bopy e o Sr. Cruzador, como era chamado.
Um trocadilho com seu nome que rimava com corveta mas que pela força da sua estatura, virou Cruzador.
Ele tirava o chapéu e cumprimentava a todos com um sorriso e um "Alles blau".
Tinham a mesma ginga. O mesmo olhar. Doce e sagaz.
O homem parecia mais forte do que era. Tinha a delicadeza de espigas, do bambu. Bailava ao sabor do vento que lhe esbarrava, para não fazer estrondo.
Aquele dia iam todos à rodoviária.
O cão doce, o Dono gigante, a Dona da casa, pequena "dondolante", com a determinação de pedras. Que os dois amavam e temiam.
Levavam a filha do meio, o marido e as duas meninas à tomarem o ônibus de volta para casa.
A menorzinha ia ao colo do pai. Ela, a pequena, de mãozinha com o avô.
Olhava o cão. Sentia.
Havia uma atmosfera de eternidade.
Uma despedida de cor não explicada.
Não prestava atenção as palavras. Via os elos quebrados. Os olhos abaixados.
Consternação.
Seu coração pulava grande, empurrando o pequeno peito.
Os pézinhos céleres queriam ficar com a agilidade do cão.
Sua liberdade.
Ele andava. Parava. Marcava um poste.
Cheirava um qualquer-coisa na beira da calçada. Inspecionava portões.
Vigiava esquinas.
Na última quadra, antes de dobrarem à direita para chegar no largo da rodoviária, o grande portão parecia fechado. A parte inferior era ferro carcomido, chapa única como saia.
Ela passou a meio da altura da saia enferrujada.
Despercebeu.
Só escutou o trovejar, a mãe e a avó gritarem.
O grande homem chamou.
Deus não intercedeu.
Uma enorme massa escura de pêlos bravios engalfinhava-se com o escudeiro malhado.
O pai com a menorzinha queria puxar a arma.
Primeiro para salvar.
Depois para sacrificar.
O grande homem, sentado ao meio fio segurava o Vira-latas, segredando poções em sua orelha cadente.
O sangue emprestava uma cor de raiva, ao lado da face, à jugular exposta.
A camisa era velha. Uma tira envolveu o pescoço do cão.
Cabisbaixos seguiram a distrair-se com as araras do pátio da rodoviária.
Confundindo o vermelho com os gritos estridentes.
Disfarçavam as dores.
A menina então, já dentro do ônibus, no cantinho apertado entre as pernas da mãe e o braço da poltrona, escondeu o rosto na janela e deixou que o coração e o entendimento escorressem pelas faces e pelo vidro.
Abanava ao trio lá fora.
Dizia adeus ao seu porto.
Lavava o sangue com o sal de seu amor.

Um comentário:

Georgio Rios disse...

Cara Marie, um texto belo, feito com alma e poesia!!!!