domingo, 10 de agosto de 2008

10 de Agosto Dia dos Pais

Os que me conhecem a mais tempo ou mais, sabem: Dia dos Pais nunca foi meu dia.
De pequena, Dia das Mães, era dia de dar presente que ganhava em concurso de redação da Hermes Macedo.
Ganhava todo ano. Minha mãe era a minha heroína. Minha Joana D'Arc que só foi ser queimada na fogueira de minha rebeldia adolescente.
Dias dos Pais eu sumia. Nem redação fazia. Acabei até na diretoria por insubordinação. Pelas mãos da D. Celeste, a professora da quarta série, severa e irredutível: Tem que escrever! É trabalho, vale nota. Todo mundo tem pai.
Eu não!
Claro que tive. Ateu é aquele que tenta negar e não quer acreditar, nega o que é.
Tive pai.
Pior. Lá em casa ele sempre foi: o pai da Mariane.
"Tu és igual a teu pai" - dizia minha mãe quando me censurava teimosia, egoísmo, rebeldia, insolência.
Mas eu não tinha pai. Ele nunca estava lá. Ele não sabia e não soube ser pai.
Pai foi drama. Orfandade. Defeito para mim.
Muito tempo.
Foi errado. Foi "O Erro"! Da minha mãe.
Foi história de brigas, de surras, de sumiços.
Até de polícia.
Foi jogador. Bígamo. Matador.
Self made men. Auto ditata. Jornalista. Radialista.
Quando fiz 18 anos, no dia do meu aniversário, me deu de presente, no seu programa de música regional, às 6:00h da manhã, a música "Chinininha Linda", tocada a todo volume no corredor de banho do pensionato em que morava. Graças a minha amiga Roselete, que sabia antecipadamente do evento comemorativo. Aproveitou que entrei no box de banho e reuniu todas as outras para presenciar minha saída sem roupa, e sem jeito. Vermelha do vapor quente do banho no ar gelado do inverno de Florianópolis, e da vergonha, embaraço de ser o alvo de tal homenagem. Brega.Caipira.
Nessa época, cheia da minha senhoridade de estudante de medicina do primeiro ano, e nos anos seguintes, o encontrava esporadicamente.
Ia almoçar em sua casa ou no restaurante de seu cotidiano. Ele me contava histórias da sua vida, de homem, de jogador, de aventureiro.
Contava "causos".
As vezes conseguia arrastá-lo para a Marrocana, a boutique mais "in" da cidade, onde lhe extorquia uma bata indiana ou uma calça da Mc Queen o jeans mais incrível e caro que, para mim, existia.
Conhecia seus amigos de jogo e de rádio.
Gerava infindáveis e até doentios ciúmes em Lena, minha meia irmã, filha de seu primeiro casamento, que nessa altura vivia com ele, para mim, suspeitamente.
Quando fiz 15 anos, e ganhei uma festa enorme na casa de minha avó, da qual tenho, hoje ainda, um album cheio de fotos dos amigos daquele tempo: a turma de 76, fiquei até o último momento, esperando que ele se mostrasse. Aparecendo magicamente, tranzendo-me um lindo presente, fazendo-me uma surpresa.
Maior que a que tinha tido meses antes ao descobri-lo, depois de uma busca detetivesca, vivendo em Porto Alegre, editando uma revista para a Sociedade Gaúcha de Engenharia e pai de dois irmãos mais velhos do que eu, de existência até então, completamente insuspeita.
Mas nada. A festa transcorreu divertida, com muito doce, muito Cuba, muita dança de rosto colado, de luz negra, de várias gerações comungando um sentimento de mundo de pantalonas, e ainda um certo clima de "o sonho não acabou". "Esse é um país que vai pra frente...."
Muitos mais pais tive naquele e em outros dias da minha vida.
Tio Luciano, o autor das fotos. Tio Otto numa delas dançando com a Tia Aparecida.
Meu pai, foi sempre meu lado esquerdo. Meu lado errado. Meu lado incerto.
Mas pensando bem, também meu lado cigano, meu lado livre, rebelde.
Fisicamente, sua passagem foi meteórica em minha vida. Era uma estrela totalmente cadente.
Para ele exprimia desejos, que sabia, jamais se realizariam.
Me encantava a luz dos fogos de suas aparições que invariavelmente deixavam chamuscas em minhas vestes, em minha alma, em minha mãe, em meus irmãos.
De um jeito ou de outro, vivemos todos sempre esperando que um dia ele aparecesse para assumir o cargo no qual tinha sido investido, mas que nunca lhe serviu, nunca lhe vestiu. Não tinha as suas medidas. Não lhe cabia.
Não foi capaz de representar, nos moldes ditados, um papel que muito pouco ensaiou ou assistiu.
Despiu-se do papel de filho antes de poder sê-lo. Teve ele também um pai itinerante. Tropeiro. Viajante.
Viveu depois o que aprendeu: Partir. Viajar. Aventurar-se.
Caiu no mundo e não nas suas regras.
Vivia quebrando e invadindo ou evadendo-se de suas fronteiras.
O pai que tive, que me sobrou deste, foi criado em minhas fantasias de bem e de mal.
Foi o que fugiu do retrato falado pela mágoa da minha mãe.
Como ele do seu, fui filha da sua ausência. Ela me constituiu.
Meu ateísmo é de pai. Seu nome me está gravado em letras vazias. A função que as preencheu foi dos empréstimos que fiz. Do meu avô, dos meus tios.
Dos remendos fiz o pai que quis. E desbravei o mundo e a vida assim.
Fui meu pai em mim.
Era livre das proibições de fora.
Elas vinham de dentro. Da interdição que eu inventava.
Podia inventar um pai a cada dia. Uma história diferente cada vez. Todos os motivos para a sua ausência.
Todos os enredos que quisesse.
Depois, sonhei todas as vinganças. Todos os perdões. Todas as psicanálises.
Fui Electra e Édipo.
Fui Cassandra e até Clitemnestra.
Passeei toda a mitologia, todo o reino das fadas e das bruxas. Todos os contos.Os quatro cantos do meu mundo.
Fiz terapia.
Não fui no seu enterro.
Da última vez que o vi, sentado no sofá da sala do meu apartamento, tinha a face com a pletora de sempre. Os cabelos já não mais tão impecavelmente englostorados. A roupa um pouco puída pelo longo tempo de uso. Um copo de whisky na mão a despeito de sua insuficiência cardíaca galopante, e me disse:
_ Pois é. Eu vivi. Certo ou errado. Eu vivi.
Não me pediu desculpas. Não se arrependeu de nada.
Foi a última vez que nos falamos. Levei-o depois embora e o deixei em seu hotel.
Eu acho. Não me lembro bem.
Hoje, não sinto mais a sua falta. Foi a sua falta que foi meu pai.
Ela me ensinou uma porção de coisas.
Ela, procurei nos homens que conheci, por muito tempo.
No pai de meu filho por exemplo.
Ela me aprendeu.
Hoje, comprei chocolates com licor e cereja. Comemorei o Dia dos Pais.

3 comentários:

Juliana Vermelho Martins disse...

Lindo!
Nem tem o que dizer...

Silvestre Gavinha disse...

Querida Ju,
Obrigada.
Adorei sua visita e seu elogio.
Grande beijo.
Marie

Murphy Brown disse...

Pois é...