quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Pessoa

Poema em linha reta

Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos)

[538]

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


No Sem cerimônias, o blog de uma amiga, o post I don't Know, me fez pensar em Pessoa, e em muitas coisas que ele escreveu. A poesia gera poesia na vida, no pensamento. Ler o pensar faz a gente pensar, lembrar, pensar... esse processo é vivo, dinâmico e excitante. Nem sempre nos faz feliz, pode mesmo nos deixar muito, muito angustiados, nos fazer sentir a grandeza ou a infinitude de nossa pequenes. Mas nos joga adiante. Sempre adiante, em busca quem sabe do alento do vazio da ausência do pensamento, esgotado em si mesmo, onde tudo forma um vasto nada.


7 comentários:

Claudia Bertholdo disse...

MArie1
Não conhecia este poema. Ele é incrivelmente cru, deixou a sensação de que fui sendo despida enquanto o lia, porque quantas vezes quis gritar ao mundo que sou apenas humana, que sim, cometo erros e que tenho pecados e pensamentos a confessar.
Tens razão quanto ao processo ler, pensar, pensar, escrever, ler, pensar...Acredito que seja o combustível da alma, do estar alerta, do ser o que se é e o que se pensa. E a forma de reconstruir-se, encontrar-se, admitir-se - tudo através do pensar.
Obrigada pelas lindas palavras!
Cláudia

Bípede Falante disse...

Também gosto muito desse poema e bastante de porrada, dá para dizer que é a zona que mais me deu medalhas. Sou por fora uma bela viola e, por dentro, cicatriz. Sou um soldado. E sendo um soldado, passo temporadas no inferno, mas volto para a batalha, para as minhas trincheiras e as de meus amigos, porque o que não me mata, me fortalece, e isso é a mais pura verdade.

Anônimo disse...

Marie,
Hoje é um dia especial para mim.
Do passado, a boa memória de um momento difícil, mas que trouxe uma infinidade de belezas para a minha vida. É claro, inclui você e tem uma data simbólica: 5 de dezembro de 1998.
Do presente, uma angústia que me fez buscar aqui neste cantinho algo que me afague. Sempre busco em você. E desta vez não foi diferente, encontrei.
Do futuro, a crença de que mais uma vez vou conseguir. Será trabalhoso, mas você vai estar comigo mais uma vez, não é? Beijo enorme, Vivi

Mariana Fernandes Lixa disse...

Olha, depois do teu comentário, vim até aqui´pra te responder, mas foi impossivel não ler e reler tudo que tem postado aqui!! Adorei!! Li teu post sobre Santa Catarina.. vc leu meu texto sobre o Luto em Blumenau?

Quando ao nosso amigo Lula e a relatividade.. é.. pobre Einstein!!

Estou te linkando, pois adorei teu espaço!!!

Abraço

Mariana

Georgio Rios disse...

Simplismente um belo espaço de poesia e amizade...Vou linkar você em meu blog!!!Vida longa

Georgio Rios disse...

OK! Poemliberado, se for fazer alguém melhor, já valeu a pena...

Anônimo disse...

Oi, também gosto muito desse poema. Obrigada por sua visita ao estranhamentos. Também voltarei sempre aqui. Bjs. M.